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Quando o Outro Mora em Nós

  • Angelo A. Lopes
  • 8 de jul.
  • 8 min de leitura

Nem sempre a dor que carregamos tem nome. Às vezes, ela aparece como um medo inexplicável de se expor, uma vergonha de falar em público, uma repulsa pelo próprio corpo ou uma voz interna que insiste em repetir: “você não é suficiente”. E por mais que tentemos calá-la, ela já está entranhada — como se tivesse sido gravada em nós.


O mais curioso e doloroso é que essa voz muitas vezes nem é nossa. Ela foi herdada. Introjetada. Passou a habitar em nós a partir das experiências que vivemos com aqueles que um dia foram nossos espelhos mais potentes: os pais, os cuidadores, os professores, os colegas — o outro.


O filho idealizado & o filho real


Todo pai ou mãe, consciente ou não, projeta sobre o filho uma ideia: o filho ideal. Essa imagem fantasiosa nasce antes mesmo da criança vir ao mundo. É o filho calmo, brilhante, obediente, carismático, saudável e, de preferência, bem-sucedido. Só que esse filho ideal não existe. Quem nasce é o filho real — com suas inquietações, particularidades, dificuldades e o seu próprio ritmo de ser no mundo.


É nesse descompasso entre a fantasia e a realidade que muitas dores começam. Quando a criança percebe que só é aceita se se encaixar nesse ideal, ela aprende que precisa agradar. Quando se afasta do que esperam dela — seja por ser mais tímida, sensível ou questionadora — o amor parece ficar ameaçado. Muitas vezes, essa ameaça não é dita, mas sentida nos gestos, nos olhares e nos silêncios.

E assim, lentamente, ela aprende a se moldar. A esconder partes de si. A se agredir para não decepcionar. A acreditar que há algo de errado com ela. E quando essa percepção se repete por tempo suficiente, vira verdade. Uma verdade aprendida, não descoberta.


Quando o que dizem vira quem somos


Desde cedo, aprendemos sobre quem somos pelo olhar do outro. Quando uma criança é chamada de "lenta", "desastrada", "feia" ou "insuportável", ela não tem elementos internos para duvidar daquilo — ela simplesmente acredita. E acredita porque quem falou é alguém importante: o pai, a mãe, o professor, o colega admirado. Aquelas palavras passam a funcionar como espelho. Mas um espelho quebrado, distorcido, que ela passa a carregar como se fosse verdade absoluta.


Com o tempo, essa criança cresce, mas continua presa a esse reflexo. Mesmo quando o outro já não está mais presente, sua voz continua ecoando por dentro. A voz do outro passa a ser sua própria voz. E é aí que mora o perigo: quando a agressão externa vira agressão interna. O julgamento do outro passa a morar dentro da pessoa. E ela mesma se sabota, se critica, se cala, se esconde.


Quando  a voz que fere vem de dentro


Alguns pacientes chegam à terapia dizendo: “Eu me odeio.” “Eu sou um fracasso.” “Eu não consigo fazer nada direito.” “As pessoas estão sempre me julgando.”

Mas, quando escutamos com cuidado, percebemos que essas frases não nasceram deles. Foram herdadas. São restos de frases ditas — ou insinuadas — lá atrás, em momentos de dor. Frases que foram repetidas tantas vezes que se tornaram automáticas, como um roteiro que a pessoa nem percebe que está seguindo.

A voz do agressor — que pode ter sido um pai ríspido, uma mãe exigente, um irmão cruel, um colega de escola — passa a habitar a pessoa por dentro. E, o mais doloroso: ela mesma se torna seu novo agressor. Se cobra. Se destrói. Se pune.


Mas nem todos reagem à dor se calando. Muitos, ao contrário, reagem com agressividade. A criança que foi criticada em excesso, ridicularizada ou negligenciada pode se tornar aquela que grita, empurra, fere — não porque é má, mas porque está tentando sobreviver emocionalmente. A raiva, nesses casos, funciona como um escudo contra o sentimento de humilhação. Ela prefere atacar antes de ser atacada. Machucar antes de se sentir impotente de novo.


Essa agressividade, quando não compreendida, tende a ser mal interpretada pela escola, pela família e até por profissionais. Em vez de enxergarem a dor por trás do comportamento, veem apenas a ponta do iceberg: a criança “difícil”, o adolescente “problemático”, o adulto “descontrolado”. E assim, o ciclo de exclusão e julgamento se intensifica — reforçando, de novo, a crença de que essa pessoa não merece amor, acolhimento ou pertencimento.


Por isso, é tão importante ampliar o olhar para além do sintoma. A agressividade, muitas vezes, é a linguagem que a dor encontrou para continuar pedindo socorro.


Corpo, voz e vergonha: o reflexo visível de uma dor invisível


O sofrimento, quando não encontra espaço para ser escutado, busca diferentes formas de se expressar. Às vezes, ele explode para fora — em forma de raiva, gritos, agressividade. Outras vezes, implode em silêncio — e se aloja no corpo, na autoimagem, nos gestos contidos, nas palavras que não saem.

Algumas dores são tão profundas que se escondem atrás de sintomas discretos: o medo de falar em público, a vergonha do corpo, a dificuldade em viver a própria sexualidade. Há quem se recuse a ouvir a própria voz em uma gravação, quem não se permita tirar uma foto. Quem se encolhe ao caminhar na rua. Quem evita olhar nos olhos dos outros.


São defesas que o corpo criou para não ser julgado, rejeitado, exposto. Porque, em algum momento, essa exposição foi dolorosa. E, agora, o medo se antecipa a qualquer nova tentativa de existir com autenticidade.

Não se trata de timidez. É medo enraizado. Vergonha cristalizada. O corpo inteiro aprende a se proteger — mesmo que a ameaça já tenha passado.

   

Quando a dor silenciosa afeta tudo


O que a infância nos ensina — mesmo que silenciosamente — costuma ecoar por toda a vida. As formas que encontramos para nos proteger, calar ou resistir, ainda pequenos, muitas vezes nos acompanham na vida adulta. A dor, quando não é elaborada, se transforma em padrões — e esses padrões moldam como trabalhamos, nos relacionamos, decidimos, sentimos e até como cuidamos do nosso corpo.

Esses efeitos não se limitam ao mundo interno. Eles se manifestam na vida concreta: no trabalho, nos vínculos afetivos, na saúde emocional e física.


Na vida profissional, muitas pessoas deixam de crescer porque têm medo de se expor. Recusam convites para palestrar, apresentar um projeto, assumir novas responsabilidades no trabalho ou liderar uma equipe porque acham que “não são boas o suficiente”. Vivem com medo de serem descobertas como uma “farsa”. Isso tem nome: síndrome do impostor — um reflexo direto das vozes internas que duvidam e sabotam.

Nas relações sociais e afetivas, o medo do julgamento pode isolar. A pessoa evita encontros, foge de situações novas, se sente inadequada perto dos outros. E quando se envolve emocionalmente, muitas vezes repete o que viveu: se submete demais, ou se defende demais. Espera do outro a validação que não encontra em si.


E entre esses sintomas, os distúrbios alimentares ocupam um lugar delicado. Para alguns, a comida vira um refúgio, uma tentativa de preencher um vazio afetivo. Para outros, é usada como punição: comer demais para se ferir, comer de menos para controlar o que parece incontrolável na vida. Há quem diga que não sente fome, ou que sente demais — como se o corpo gritasse o que não pôde ser dito.


Mas essa guerra psíquica nem sempre está restrita ao prato. Há quem busque alívio por meio do álcool, das drogas, do consumo compulsivo, do excesso de trabalho ou de relações afetivas disfuncionais. Cada um desses caminhos funciona como tentativa de preencher um vazio, calar uma dor ou suportar aquilo que não se consegue elaborar. São formas de anestesiar o que machuca por dentro — mesmo que, por fora, tudo pareça sob controle.

Esses comportamentos não são escolhas conscientes, mas estratégias psíquicas de sobrevivência — modos de lidar com o insuportável quando não há palavras, espaço ou escuta para a dor.


E, muitas vezes, essa dor não elaborada transborda para a relação com os filhos. Seja por meio da ausência emocional provocada por vícios, do controle excessivo, da idealização de um filho perfeito que compense feridas antigas, ou da oferta material como forma de afeto — o sofrimento se repete. Ele atravessa vínculos e chega à próxima geração como uma herança silenciosa, mas poderosa.


O que não foi reconhecido em palavras, aparece em gestos. O que não foi acolhido, retorna como repetição. Cada adulto, ao cuidar de uma criança, carrega dentro de si os ecos do que viveu — e, muitas vezes, repassa o que não entende, o que não curou, o que doeu. É assim que, sem perceber, o outro continua morando em nós — e, por meio de nós, age no mundo.


E é justamente na forma como cuidamos, educamos e nos vinculamos aos nossos filhos que esses ecos ganham contorno. Pais marcados por críticas ou por ausência de afeto podem, sem perceber, repetir os mesmos padrões. Alguns se tornam exigentes e controladores, reproduzindo a rigidez que viveram. Outros, movidos pela dor que carregam, tentam fazer diferente — e acabam cedendo demais, como se o amor estivesse em não dizer 'não'. Mas o que parece liberdade, muitas vezes, é vivido pela criança como abandono simbólico.


Crianças precisam de limites. Não para serem reprimidas, mas para saberem até onde podem ir, o que é seguro e — principalmente — para entenderem que são importantes o suficiente para que alguém diga: “eu me importo com você, por isso estou aqui para te guiar.” Quando esses limites falham, muitas crianças começam a testar os adultos — não por maldade, mas como uma forma inconsciente de perguntar: “há alguém aí por mim?” Assim, o mal-estar se perpetua. Passa de forma silenciosa de pais para filhos, como uma herança invisível que segue cobrando seu preço até que alguém decida quebrar o ciclo.


Pais também foram filhos


É importante lembrar que muitos pais, antes de serem cuidadores, também foram crianças. E, muitas vezes, foram crianças feridas. Carregam marcas de rejeição, humilhação, abandono ou exigência extrema. Cresceram tendo que calar a própria voz, conter a própria dor, se adaptar ao que esperavam deles.


Muitos repetem hoje o que viveram, dizendo: “apanhei e nem por isso virei um mau caráter”. O que essas frases escondem é o fato de que nem sempre quem sobreviveu está saudável — só aprendeu a funcionar com dor. E por não terem acesso às dimensões psíquicas do que viveram, muitos acabam reproduzindo aquilo que os marcou, sem perceber que essa violência, ainda que “normalizada”, deixou cicatrizes profundas.


O que parece afeto, às vezes, é medo de ocupar o lugar de autoridade afetiva. O que parece respeito, às vezes, é omissão travestida de modernidade. A criança precisa, acima de tudo, sentir que existe um adulto capaz de cuidar, orientar e proteger — mesmo que isso implique dizer “não” com firmeza e amor.


Quando esse “outro” (pai, mãe, cuidador) não se faz presente de forma consistente, com autoridade afetiva e função simbólica, a criança fica sem estrutura psíquica clara. Ela não sabe até onde pode ir, não entende o que é seguro, o que é desejável, o que é cuidado. E cresce assim: insegura, desorganizada, em busca constante de validação — tentando preencher um vazio de referência que deveria ter vindo de quem a introduz no mundo.


É por isso que romper o ciclo não é tarefa simples. Exige coragem. Exige consciência. Exige cuidado com as próprias dores, para não transmiti-las adiante. O primeiro passo, muitas vezes, é reconhecer que o que machuca no presente é um eco do passado — e que, se foi herdado, pode ser interrompido.

  

Viver é também se ferir — mas é possível não seguir ferindo


Não existe vida sem marcas. Todos carregamos alguma dor: uma ausência, um silenciamento, uma frustração, um afeto negado. O que nos difere não é a presença ou ausência do trauma, mas o que fazemos com ele.


Quando o sofrimento não é reconhecido, ele se transforma em pedra no caminho. Mas, quando se torna consciente, pode virar matéria de transformação. Não é fácil — mas é possível. O que era destino cego pode virar escolha. O que era repetição pode virar reflexão. O que era vergonha pode virar narrativa.


Na ausência de espaços de escuta, muitos buscam refúgio no mundo virtual — criando versões de si que não sofrem, não falham, não sentem. Mas ali, muitas vezes, o eco da dor se repete, seja na forma de isolamento, na busca incessante por aprovação ou até na reprodução da mesma violência que um dia feriu.


Por isso, abrir espaço para escutar a si mesmo — com verdade, com cuidado, com responsabilidade — é talvez uma das tarefas mais difíceis e, ao mesmo tempo, mais libertadoras da vida. Nem sempre conseguimos fazer isso sozinhos. E tudo bem. O importante é saber que o ciclo pode ser interrompido. Que a dor pode ter um outro fim. Que ainda dá tempo de se escutar — e, enfim, se reconhecer.

 

 
 
 

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